sábado, 24 de setembro de 2011

O FANTASMA NA MÁQUINA



Naquele instante, ela chorava convulsivamente, como se fora trespassada por uma paixão sem cura; fazia esforços para conter os soluços que se multiplicavam numa polifonia caótica; tentava enxugar o rosto imerso em lágrimas, por entre as quais desciam manchas do lápis que contornara os olhos. Naquele simétrico instante, quando pôde falar, vieram à tona as razões do assombro: acabara de receber um email do pai, falecido há anos. A incredulidade previsível motivou investigações, mas tudo permaneceu sem explicação, sem uma razão que justificasse a estranha mensagem. O pai anunciava visita próxima e solicitava recepção em conformidade com os rituais da tradição em que fora educado. Ela estudou as tradições, afastou-se dos amigos e, contra todas as vozes que àquela encenação se opuseram, apartou-se do mundo e preparou-se para o encontro. Encomendou uma nova mesa, dispôs nela iguarias e objetos tradicionais. Banhou-se, demoradamente, vestiu-se e, silenciosa, como convém às representações hieráticas, esperou, à mesa, a chegada do visitante. Naquele simétrico instante, em que tudo o que se move parece transpor as medidas do perceptível; em que um tremor no coração anuncia, como um arauto, o inevitável assombro; em que todas as ciências e todos os saberes silenciam seu rugido e humildemente obliteram-se diante do inominável; em que todas as paixões, que se escondem sob a ilusão de seus sabres afiados, perdem seu vigor e sua fúria; naquele instante, em que tudo o que se perde, para sempre estará perdido; naquele simétrico instante, o pai dela apareceu.

FERNÃO  GOMES

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