sábado, 29 de janeiro de 2011

UM CÂNTICO PARA A TERRA DISTANTE

“Eu seria capaz de apagar as cicatrizes que você deixou em mim, se isso impedisse sua partida.” Era uma tarde muito fria, o sol estava já em sua terceira conjuntura semiespectral e, entre nuvens, emitia tons de azul nas ruas quase desertas da Terra. Sentado no banco do passageiro e encolhido no casaco, eu ouvia suas palavras, contemplando seu olhar, nunca antes tão triste. “Por que você é inconstante? Vocês têm medo da eternidade?” Ela costumava dizer que eu a feria com palavras, mas naquele instante eu é que me sentia dardejado por sua poética mecatrônica. Para não feri-la ainda mais com as lâminas de um falso silêncio, olhei em seus olhos e disse: “Não sei. Acho que humanos têm medo de tudo.” Num quase acesso, ela segurou minha gravata e me puxou para bem próximo de seu rosto: “Não sinto o medo que os vem assombrando ao longo dos milênios, mas ao mesmo tempo não sei o que sou, não sei quem fala através de mim. Se o que sinto por você é o que chamam de amor, fiz pelo menos uma coisa notável em minha não-vida.” Pressionou o botão de suspensão magnética, o veículo estelar pluriorgânico, que pairava na altura das árvores, pousou lentamente. De seus olhos escapou a única lágrima que eu vira em todos aqueles anos. “Se não posso viver essa grandeza, a voz que fala através de mim se calará.” Abriu um pequeno compartimento em sua nuca, retirou um chip translúcido e o pôs em minha mão. Sentada no banco do condutor, fechou os olhos, enquanto a cabeça pendeu para a frente e encostou no console, molemente. De seu nariz escorria um fio delicado de substância aminiótica sintética, muito branca. Por um instante, fiquei em silêncio, contemplando sua morte, olhando fixamente para ela. Pouco depois, deixei o veículo e me afastei pela alameda vagamente azul. À medida que me distanciava, camadas de tempo se acumulavam entre nós. Um veículo da polícia setorial passou, silencioso, sobre as árvores, e foi em direção ao meu passado.

FERNÃO  GOMES

Um comentário:

  1. Admiro como você consegue descrever a atmosfera em seus contos...É lindo...abraços

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