sábado, 5 de fevereiro de 2011

FRONTEIRAS

Nancy lembrou-se do encontro com Hartigan. Deixou o camarim às pressas e alcançou a rua. De repente, uma sensação arrepiou-lhe o corpo: alguém a observava. Voltou-se, e viu apenas sombras. Quase corria, os sapatos chocavam-se contra a neve acumulada nos frisos da calçada. Onde estaria Hartigan? Por engano, entrou numa rua escura, interrompeu os passos e permaneceu cercada pelas trevas. Súbito, um vulto saltou sobre ela, Nancy gritou e se debateu, tentando livrar-se daquelas mãos geladas, mas o assassino agarrou seu pé, ela golpeou a criatura, arrastou-se pela escuridão e percebeu-se subitamente entre prateleiras repletas de livros. Em sua mente formavam-se indagações confusas e sem respostas. “Que lugar é este? Onde está aquele que há pouco saltou sobre mim?” Olhou ao redor e deu-se com o local em completa penumbra. Levantou-se e caminhou, vagarosamente, aguçando os sentidos, olhando entre corredores extensos e prateleiras altíssimas. No balcão, encontrou um folheto sobre a programação cultural da cidade e ficou perplexa: São Paulo. “Meu Deus! Como vim parar aqui? Estou numa biblioteca ou livraria de outro país! Mas como?" Retornou ao ponto original onde primeiro entrara naquele local, mas a criatura estava diante dela, prestes a agarrá-la. Um soco a derrubou no carpete. Entontecida, arrastou-se, de costas, apoiada nos cotovelos, enquanto o vulto se aproximava, ameaçadoramente. Nancy encostou a cabeça na prateleira, sem possibilidade de fuga. No instante em que o assassino levantou o braço para golpeá-la, ouviram-se tiros. O vulto caiu a seus pés e, na perspectiva do corredor, surgiu Hartigan, olhando para a stripper. Pouco depois, antes de deixar aquele lugar, quis saber o que acontecera. Hartigan apontou-lhe o livro de onde saíram e para onde voltariam: Sin City – Frank Miller. “Então sou apenas uma personagem?” - perguntou a si mesma. A vida parecia tão real, mas agora o que lhe restava era a constatação de que ela própria e tudo o que conhecia não passavam de ilusão!? “Como é possível?” – insistiu. “Não sei.” – respondeu Hartigan. “Talvez tudo seja uma inconcebível ficção. Uma ficção dentro de outra.” Enquanto deixavam o lugar, o luminoso do teto espalhava sua luz sobre as fronteiras de todas as ficções.

FERNÃO  GOMES

4 comentários:

  1. O conto é mesmo um espanto. Uma coisa que eu volta e meia fico a pensar, após a leitura de uma narrativa, é: será que esta história, apesar de ficção, realmente aconteceu em algum ponto do universo e seu escritor a captou de alguma maneira extrasensorial?
    Será que, em algum local, alguém conta a nossa história sem que nós mesmos saibamos e ele menos ainda?
    É de se pensar.
    Pergunto: onde posso ler ASFIXIA e OS NÁUFRAGOS DO BOJADOR?
    Abraço, professor.

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  2. Impressionante. EM poucas palavras nos proporciona uma reflexão.

    Um grande abraço,

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  3. E se nós todos fossemos uma ficção? Criada por uma mente tão ambiciosa quanto as nossas?

    É o professor José Gabriel do COC ai em cima? Lembra de mim?

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  4. HAHA gosto das três fotos *-*
    toda vez que venho no seu blog fico um tempão pensando em várias coisas,você e essa sua mania de fazer as pessoas entrarem nas suas viagens loucas. Adorei o texto *-*

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