domingo, 3 de abril de 2011

A VIDA POR UM FIO

A long-neck quase vazia balançava feito um pêndulo irregular, displicentemente pendurada pelo gargalo, entre os dedos médio e indicador. Tomou o último gole como se fosse o último. Uma frequência de amargor e acidez manifestou-se espontaneamente em sua boca e dali se espalhou por todo o corpo, alojou-se nos ossos, nos músculos, percorreu as extensas regiões submersas da pele, causando-lhe arrepios: foram sintomas produzidos não pelo excesso de cerveja, mas pela inexplicável sensação de premência da vida, de brevidade de suas potências. Quando é a própria vida que mais avidamente se deseja, é unicamente ela que se esvai e se perde, para sempre. Descalço, avançou pela areia grossa da praia, sentindo o cheiro forte de angústia e peixe a inundar-lhe o corpo: morrer talvez seja isso, o fim da embriaguez; o olhar construído em outro extremo. Aproximou-se do cesto de lixo e ali deixou a garrafa vazia entre as outras que ele mesmo há pouco deixara. O cheiro acre de vida em decomposição elevou-se pelo ar, causando-lhe náuseas e contrações no estômago. Despencou na cama assim como estava, humano e cheio de cicatrizes. Ao despertar, não se lembrou de sonhos ou de qualquer movimento ao longo da madrugada, mas havia em seu ser a quieta e límpida impressão de ter protagonizado périplos em extensos campos de trevas. Ainda não havia sol quando pôs os pés na areia, outra vez. Uma claridade vaga possibilitava um horizonte, mas nada por ali se movia exceto o mar ancestral: nenhum marinheiro, nenhum vapor. Sentou-se na areia e ficou quieto, contemplando um albatroz acomodado sobre o ninho. Mergulho em sua imensidão: uma vez sou a pena do albatroz; outra, seu próprio ninho, e ouço somente as ondas do misterioso mar, a engolir o cais, pouco a pouco. Mais adiante, uma gaivota riscava o horizonte, em voo esplêndido e mudo.

FERNÃO GOMES

Um comentário:

  1. Incrível como a calmaria do exterior se contrapõe à fúria arrebatadora do interior. Uma calmaria irritante entrechocando-se a uma fúria que deixa a qualquer um atônito.

    E a vida por um fio, pois de fios é que ela se consiste, não é?

    Abraços, professor!

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